Recife
“O Recife é todo esse mosaico de cores, de cheiros e de sons. Nesse desadorado caos urbano, reflexo confuso da fusão violenta de várias expressões culturais, só uma coisa tende a dar um sentido estético, próprio à cidade. A absorver e anular os efeitos dos contrastes desnorteadores, dando um selo inconfundível à cidade. É a paisagem natural que a envolve. O seu mundo circundante, com seus acidentes geográficos e sua atmosfera sempre em vibração, vara em todos os sentidos pelos reflexos intensos da luz sobre as águas” A Cidade in Documentário do Nordeste – Josué de Castro, 1937
“O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, nem importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs”
A Cidade – Nação Zumbi, 1994
É a partir destes dois textos que inauguramos neste blog a seção dedicada à cidade do Recife. Estes, de maneira alguma foram escolhidos casualmente, são antes sinais de um frutífero diálogo entre sujeitos de dois momentos distintos do processo de modernização materializado na “metrópole do nordeste”¹. São quase sessenta anos que separam estas duas crônicas da cidade do Recife, e, muito embora este dado implique em atenção especial a distância temporal de suas autorias é ao mesmo tempo elemento de uma profunda ligação entre os espaços retratados nestas duas temporalidades.
Na primeira metade do século, o recifense e cidadão do mundo Josué de Castro já anunciava o que os caranguejos com cérebro¹, capitaneados pelo mangueboy Chico Science, entenderiam e atualizariam na década de noventa: a cidade entendida como espaço geográfico, como relações sociais manifestas e manifestadas pela materialidade do urbano. Ambos utilizaram suas capacidades de observação e síntese para expressar criticamente o que de mais aparente surge na paisagem do Recife, suas contradições sociais e espaciais.
Contradições assentadas na sua série de “aterros indiscriminados e mangues consumidos”³. Na planície costeira recortada pelo entrelaçamento do Beberibe e do Capibaribe e seus tributários. Da expulsão dos holandeses a centralidade concebida pela economia do açúcar, do ponto de partida à incursão pelo interior do nordeste ao status de metrópole do nordeste, os cronistas dão a tônica do cotidiano à formação sócio-espacial da “Veneza brasileira”.
Josué de Castro está atento a formação sócio-espacial do Recife e demonstra, em sua descrição do que chama de paisagem viva, como concebe essa visão metodológica. No texto supracitado costura, portanto, elementos do sítio urbano e localização geográfica com processos históricos. Não deixa de perceber como a passagem dos holandeses deixou marcas sobre os mangues e aterros, assim como percebe o impacto da economia açucareira e sua passagem de engenho à indústria.
Com Sience, muito embora não esteja circunscrito ao plano acadêmico, não é diferente. Capta em suas letras a ligação entre o mangue, os mocambos e atração exercida pelo centro urbano aos expropriados do campo, ao mesmo tempo em que insere críticas à economia internacional financeirizada que comanda hoje a expansão urbana do Recife.
A referência aos textos tentou expressar o Recife de Josué de Castro e o Recife de Chico Science em contraste de suas constantes transformações. Afinal, Chico Science alertou que “a cidade não pára, a cidade só cresce, o de cima sobe e o de baixo desce”.
Notas:
Josué de Castro é tido como grande inspiração intelectual do grupo Nação Zumbi. É na música “Da Lama ao Caos”, homônima do primeiro disco da banda, que a referência ao médico-geógrafo fica explicitada – “Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça. Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”.
Alusão ao manifesto Caranguejos com Cérebro redigido por Fred Zero Quatro, integrante do grupo musical Nação Zumbi. Acesso disponível em http://www.recife.pe.gov.br/chicoscience/textos_manifesto1.html
Ibidem
Bibliografia:
Castro, Josué. Documentário do Nordeste. São Paulo, Editora Brasiliense, 1957